Em terapia

Pensara nele com certo carinho. Um sentimento despretensioso que a remetera à sala onde ele a aguardava.

Enquanto subia as escadas ruidosas de madeira, ela se apequenava. Diante dele, sabia-se tão frágil que temia atravessar a porta e sucumbir a uma dor maior do que a que lhe trouxera até ali.

Paradoxalmente, estava segura, como se aquela sala fosse um relicário de onde não pudessem escapar nem os segredos nem a alma que, enquanto subia, parecia escorrer-lhe, como energia, pelos pés.

Era uma dor profunda a que sentia. Não se percebia na superfície. Não se habituara a falar sobre ela. Como raiz, parecia intrinsecamente aderida a sua alma. Como uma tatuagem na alma que não se extrai sem deixar cicatriz.

Parou diante da porta aberta.

Da sala ainda vazia, emanava o cheiro bom do incenso que, às vezes, imaginava sentir no meio do dia.

Jogou-se nas almofadas sobre o sofá coberto com mantas coloridas e pareceu-lhe, por um instante, estar num jardim entre as cores, os aromas e o silêncio que a cercavam.

Ele se sentaria logo na poltrona branca e, diante dela, com a luz da sala ao fundo, respiraria profundamente, beberia um gole de café e começariam.
Tudo ali a acolhia.

Ela já escorregara o corpo sobre as almofadas, deitando a cabeça no encosto e, não houvesse ainda uma pequena tensão interior, já teria tirado os sapatos.

Ainda assim, algo nela ainda se angustiava. Estar ali era, definitivamente, um ato de coragem. E abrir-se era um novo exercício praticado com embaraço.
Não havia garantias de que pudesse ser percebida naquilo que escondia muito intimamente, até mesmo de si, embora notasse que o olhar dele era também profundo. Encantara-se por essa profundidade pois ninguém a olhara tão de perto. Não permitira. Mas agora havia uma quase alegria em ser notada, cansada que estava de viver na penumbra, esquecida de seus próprios contornos.

Aconchegou-se novamente, com dificuldades em achar o ponto exato em que o sofá não parecesse divã, em que a análise parecesse atenção e a conversa apenas bate-papo.

Também adquirira o vício de olhá-lo além. Ele era uma presença atenta e calma, em harmonia com o cenário que ocupavam. Mas se revelava pouco. Era ela quem estava exposta ali, como tinha que ser.

No entanto, não conseguia evitar de reparar nas pequenas histórias que colhia dele. E de como poderiam dividir gostos, filmes, textos, numa relação de afinidade que ela conseguia imaginar. Poderiam ser amigos, pensava assim, mas era uma forma de distrair-se e aceitar expor-se àquele homem que entrara na sua vida com verdades nem sempre incontestáveis, por vezes irritantes. Necessárias.

Quase tinham a mesma idade. Talvez histórias parecidas, embora aparentassem diferenças.

Mas como não aparentava tudo que era, concluíra que isso era algo que não dava para saber sobre ele nem sobre ninguém. Nunca aparentamos tudo que somos – há sempre a parte escondida, nem sempre a feia que limpamos antes de expor, mas, às vezes, a melhor parte de nós se esquiva da luz. Ela se vestira de uma melancolia que sempre existiu mas nunca estivera no foco, como agora.

Pensava demais sobre as coisas que calava ou falava para ele. Mais sobre as que ele lhe dizia. Ali, na caminhada até o carro ou, ainda, no dia seguinte, quando tinha, invariavelmente, vontade de voltar àquela sala, com as idéias recolhidas na véspera já todas arrumadas em pilhas próprias, como se pudessem sustentar-se assim. A incoerência das coisas lhe afligia, por isso a vida lhe afligia, por isso sempre buscava ordenar tudo, tudo, mesmo o que nela era natural desordem. E custava-lhe desapegar-se do hábito, embora soubesse que uma palavra poderia derrubar as tais pilhas que gastara tempo em construir.

Trazia-lhe grande inquietação a independência de suas idéias, a forma como trocavam de lugar e a confundiam, ela própria a criá-las e a não conseguir gerí-las.

Aborreciam-na agora, enquanto arrumava de novo as almofadas do sofá, pensando em como ele gostava do desconfortável jogo de embaralhar-lhe a mente e desarticulá-la. Jamais poderia perdoá-lo se alegasse inocência já que era incisivo demais.

Mas, como também era carinhoso, sempre o perdoava por abrir-lhe a porta e fazê-la descer as escadas sozinha e desmontada. Embora ele sequer se preocupasse com seu perdão.

Ela, sim, precisava de seu próprio perdão. Poucas vezes fora generosa consigo, reconhecendo sua condição tão…humana? Sua fragilidade diante do mundo – cujas proporções ele a ensinava a reduzir – era assustadora.

Por isso, descia as escadas com mais cuidado do que as subira, emprestando-se mais fôlego.

Por isso, muitas vezes, era difícil deixar a sala, onde havia um certo entrosamento entre tons, cheiros e luz e sua vida desacelerava, suavemente, mesmo quando as idéias tentavam atropelá-la.

Ela o deixava para trás levando lembranças que a refrescavam e a incomodavam.

Talvez também deixasse algum rastro ali. Pensar que não era ruim – era muito vaidosa e não atingira ainda aquela leveza de espírito que tem quem não faz questão de ser visto. Gritava mesmo quando quieta.

Então entregava a ele fragmentos de textos que voltaram a surgir-lhe. Pertenciam àquele lugar pois ali renasceram. Eram um pouco dela que ficava.

Um longo silêncio a acompanhava da sala até a garagem onde o manobrista sempre a despertava para os sons e assuntos da vida que havia do lado de fora. Riam juntos numa conversa boba e alegre, enquanto trocavam até logo.

Depois havia música no carro. Nunca escolhia seguir em silêncio, assim não seria tomada inteiramente de assalto. Se saíra feliz, cantava no caminho de volta, sobrepondo sua voz à canção que tocava no MP3 do painel.

Difícil seria abrir a outra porta para a qual se encaminhava, a da sua casa, onde lhe esperavam com luzes acesas, afagos e histórias felizes. Ah, uma onda morna de calor lhe vestiria a alma exposta ao sereno, fazendo-lhe acreditar que tudo voltaria ao lugar. Mas, ao fim da noite, quando a casa se aquietava e as tarefas acabavam, ela nunca era a mesma.

Só permanecia a sensação, nem sempre angustiante, de não saber quem era de fato.

Mas que se diluiria ao amanhecer.

E cada vez mais até o dia em que voltasse à sala onde ele a estaria esperando.

3 comentários em “Em terapia

  1. Ola Ana,

    Parabéns pelo seu blog. Sinto que em todos os seus textos vc coloca vc mesma. Suas experiencias de vida são refletidas em seus textos e poesias. Este em Terapia tem tudo a ver com o seu momento de terapia. Vc já mostrou o texto para o Aurélio?.

    Beijos,
    Marcia e Amador

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  2. Obrigada, queridas Michelle e Marcia, pelo incentivo. Amador, também, q bom vc por aqui!
    Marcia, há sempre o meu olhar, claro, impregnado das histórias q vivi, nem sempre protagonista, algumas vezes telespectadora, mesmo q pra narrar o q for pura ficção.

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