do que lembramos, afinal

A vida não é o que se viveu,

mas sim o que se lembra,

e como se lembra de contar isso.”

(Gabriel García Márquez)

Voltando do trabalho e olhando, desantenada, as imagens que passavam em velocidade pela janela do ônibus, revelou-se a singela verdade: não eram os grandes gestos nem as maiores provas de amor que contavam no fim das contas mas o carinho contido nas pequenas provas involuntárias que oferecemos aos outros.

Mesmo tendo a mãe estado em vigília por noites inteiras, cuidando das doenças infantis, quando pensava no maior gesto amoroso da mãe, lembrava-se dela segurando sua mão febril e prometendo pintar-lhe as unhas quando voltassem do médico. Suas mãos pequenas confundidas com as mãos macias da mãe, o gesto morno no meio do dia, era a recordação que mais a emocionava.

Deduziu que os grandes feitos, às vezes, são os mais fáceis. Junta-se a dose suficiente de coragem para realizá-los e eles se realizam. Mas, sob a ilusão de que a emoção existirá para sempre à luz daquele acontecimento, negligenciam-se os dias. Mais à frente, o convívio descuidado traz a sensação de que o movimento que nos conectou talvez tenha-se perdido, pulsando mais vivas as horas de solidão.

Emocionou-se com os pensamentos que lhe vinham e percebeu que se esquecera do ponto em que deveria descer. Não se incomodou de andar por mais quadras porque estava comprometida com a pequena descoberta que a confortava.

Estava alegre quando desceu do ônibus. Despediu-se do motorista com um sorriso e enveredou pelas ruas por onde, antes, só passara dentro da condução. Seguiu, pensando que, quando experimentamos certas gentilezas nas miudezas da rotina, aí sim o amor nos invade com sua alegria arrasadora. Sorrimos, recordando as gargalhadas nascidas do que, hoje, é piada que já esquecemos. Ou como foi bom, simplesmente, estarmos acompanhados de uma amiga ou um namorado numa tarde comum, em que a atenção foi tanta e o sentimento foi tão calmo que estávamos protegidos por um afeto que, acreditávamos, não nos faltaria.

Diria ao amor que perdera, se pudesse, que o momento em que mais se sentira amada foi quando caminharam juntos numa noite de inverno como aquela. Só porque era frio e ele tirara suas luvas para que vestissem as mãos dela.

Concluiu, então, que nos esforçamos demais para sermos aceitos, quando bastam apenas a espontaneidade dos gestos de carinho. Porque o amor é simples e espontâneo. Mesmo quem não se apega a sentimentalidades ama, dando de comer e alimentando-se dessas migalhinhas. No fim, o que alimenta o amor é a massagem nos pés quando doem, é o aquecedor ligado quando o banho seria frio, é oferecer o melhor lado da calçada ou um abraço no fim do dia.

Do que sentimos falta, quando partem os que amamos, é de sua presença nos pequenos cantos da nossa rotina. É o que nos faz perceber a quantidade de coisas miúdas a que os associamos e que os torna parte não só da nossa história mas de nós mesmos.

Tudo lhe ocorrera no caminho de volta. E precisou parar no meio da rua para entender onde estava após todos os passos dados com a mente ocupada pelas idéias.

Prestou, então, atenção às casas que sempre via de longe e que, antes, eram imagens ligeiras em sua janela. Próxima, viu-lhes os detalhes da constituição. Eram quase iguais, tinham a mesma estrutura, variando-se, apenas, as cores, a textura e as fissuras das paredes e dos muros.

Riu-se. Porque ela se sabia, também, rica de detalhes como as casas, as ruas, suas lembranças ou os sentimentos que carregava. Sólida, apesar das ranhuras. Discreta, como se obedecesse a um padrão. Mas essencialmente única em suas cores verdadeiras e na resposta ao toque afetuoso.

E parecia possuir um amor modesto e uma recatada coragem de vivê-lo mas, observada de perto, ver-se-ia que era capaz da mais corajosa atitude: devotar-se, permanentemente, ao amor conquistado, aceitando-lhe as imperfeições e, ainda assim, admirando-lhe em sua forma.

Seguiu direto pela rua porque reconheceu onde estava e achou a direção de casa. Não precisava de companhia. Mas, se mais alguém descesse do ônibus, poderia acompanhar-lhe em segurança porque ela conhecia as esquinas em que não deveria dobrar. E, se o acompanhante fosse amigo, oferecer-lhe o cachecol como proteção seria suficiente para um bem-querer germinar pois, afinal entendeu, são as experiências ordinárias que ficam para sempre.

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